segunda-feira, 27 de junho de 2022

NECROPOLÍTICA, de Achille Mbembe


Um ensaio de setenta páginas. Uma ideia a explicar. E por meio dela, perpassam diversas teorias e conceitos complexos das Ciências Humanas. Tal é o resultado da reflexão que Achille Mbembe propõe nesta obra fundamental para a compreensão da modernidade. O autor, que dialoga com a filosofia de Hegel e avança até Guatarri, discorre sobre a necropolítica a partir da conjugação de um tríplice olhar: o primeiro sobre o conceito de biopoder, de Foucault; o segundo sobre o estado de exceção e, por último, sobre o Estado de sítio. O arcabouço dessa perspectiva discorre sobre os acontecimentos político-sociais que se ampliam desde a Colonização até o Campo de Extermínio nazista e nas questões envolvendo palestinos e israelenses na contemporaneidade. No que se refere ao mundo colonial, o autor destaca que o sistema de plantation impõe ao escravo "uma tripla perda: perda de um 'lar', perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político". A partir de análises com essa densidade, é possível recorrer à historiografia do Brasil Colonial e estabelecer inúmeros diálogos com o livro de Mbembe. No que se refere à temática dos Campos de Concentração nazista, ainda que o autor deixe claro que eles não seriam o ponto fulcral da obra, há uma rica discussão sobre as rupturas e permanências presentes na construção deste espaço para a morte, dialogando com autores como Saul Friedlander, Enzo Traverso e Hannah Arendt. O diálogo com a produção acadêmica de temas tão diversos quanto o Atlântico negro e o Holocausto tornam o livro de Mbembe uma referência essencial no campo de estudo das políticas para o assassínio,  forjadoras da modernidade. 

terça-feira, 31 de agosto de 2021

1939: contagem regressiva para a guerra, de Richard Overy

Um livro essencial para quem deseja reviver, dia a dia, instante a instante a atmosfera de elevada pressão que antecedeu à eclosão da Segunda Guerra Mundial. O autor, renomado pesquisador sobre o período, elenca nos capítulos, as tomadas de decisões dos diferentes líderes envolvidos na escalada para o conflito bem como delineia a intensa teia de interesses que atravessa cada uma das nações. No panorama reconstruído por Overy, Hitler, Chamberlain, Daladier, Stalin e Beck (dentre outros líderes poloneses) são mostrados ao leitor com todas as suas características e objetivos principais. O autor não hesita em destacar cada uma das lideranças dentro dos contextos de crise e evidencia como cada um deles trata a situação analisada. O autor divide o livro em capítulo curtos, cada um deles tomando um espaço de alguns dias (24-26; 27-31; 1-3; 3) e uma conclusão que questiona: Por que a guerra? A pequena obra conta ainda com rica bibliografia que auxilia o leitor que deseja conhecer melhor esse período histórico tão profundo em transformações e arranjos-rearranjos políticos. O que se vê, ao longo destes poucos dias, é uma intensa negociação que perpassa todas as instituições das nações envolvidas bem como, não raras vezes, a atuação de indivíduos que buscam, sozinhos, uma mediação para os mais distintos interesses em jogo. O cenário para o desenvolvimento do drama, é o destino da Polônia, Estado recriado pelos vencedores no pós-guerra e a quem Hitler ameaça com uma invasão ao exigir a incorporação ao Reich da cidade livre de Danzig. O livro, apesar de curto, toca em pontos sensíveis para a historiografia do período e enfrenta com muita clareza os debates entre aqueles que acreditavam que Hitler desejava criar um império mundial ou uma área de influência à leste às expensas da URSS, tese à qual Overy se filia. Sobre o destino da Polônia, o autor apresenta uma das melhores sínteses: "A verdade gradualmente ficou clara para a liderança polonesa: o Ocidente jamais pretendera lutar em sua defesa", e sentencia, de maneira brilhante: "Como se viu depois, a Polônia foi traída pela guerra assim como a Tchecoslováquia foi traída pela paz". 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

La Dictadura Nazi: problemas y perspectivas de interpretación

O livro do historiador britânico Ian Kershaw é um excelente guia para os interessados neste tema tão complexo que é o nazismo e seus significados. A obra é composta por dez capítulos que versam sobre questões diversas do regime tais como: a essência do nazismo: uma forma de fascismo, um tipo de totalitarismo ou um fenômeno único? ou ainda, Hitler e o Holocausto...Kershaw não se furta também a inserir um debate sobre as perspectivas historiográficas no período posterior à unificação para apresentar aos leitores as mudanças de perspectivas de análise ocorridas ao longo do tempo. Os pontos discutidos por Kershaw nesta obra a torna uma leitura indispensável aos estudantes do século XX pois eles se relacionam com os fenômenos que marcaram os anos 1930 e 1940 cujas consequencias se fazem sentir até a atualidade. Sobretudo merece destaque a densa e rica bibliografia comentada pelo autor ao longo do trabalho e suas notas sobre os assuntos em debate. Os problemas e as perspectivas de interpretação deste movimento político são elencados e esclarecidos pelo estudioso que não deixa de apontar qual o caminho ele pensa ser o menos controverso para o enfrentamento dos objetos de pesquisa que se vinculam ao regime alemão. Longe de tentar apreender os acontecimentos por meio de uma chave de análise simplista, Kershaw discorre sobre os intrincados eventos recordando que "a questão de distribuir culpas, pois, ofusca a verdadeira pergunta que o historiador tem que responder: precisamente como foi que o genocídio chegou a ocorrer, como foi que um ódio desequilibrado, paranóide e uma visão milenar se converteu em realidade e foi implementada como horrível prática de governo". Uma vez mais, são as perguntas e não as respostas a chave para a interpretação deste período histórico. Enfrentar os como, os de que maneira, os caminhos da técnica são os desafios de quem se debruça sobre este momento na história contemporânea. Que tenhamos sempre um guia seguro como este livro para suscitar estas questões mobilizadoras! 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Negação, de Deborah E. Lipstadt

  Imagine ter que provar que o Holocausto existiu, nas barras dos tribunais. Esta é a história real contada neste livro e em um filme de igual nome lançado há algum tempo. O livro narra o embate que colocou frente à frente David Irving, um dos maiores especialistas em algumas temáticas da Segunda Guerra Mundial e a professora Deborah E. Lipstadt, docente de Judaísmo Moderno e diretora do Institute for Jewish Studies, da Universidade Emory. O que estava em jogo neste julgamento que aconteceu na Inglaterra - onde, pasmem, o réu precisa apresentar as provas daquilo que escreveu - era não apenas se o texto da professora Lipstadt que tratava do Holocausto era real mas também sobre o movimento negacionista desse acontecimento histórico. Ao longo do século XX, em várias ocasiões o negacionismo, ou seja, o movimento que afirmava que o Holocausto não teria ocorrido, mostrara sua face. O processo que colocava frente a frente os dois professores era também, de certa forma, uma avaliação sobre um acontecimento histórico e sua representatividade ao longo do tempo! Testemunhas foram convocadas para depor a favor de Irving e de Deborah, o que transformou o tribunal numa espécie de sala de debates de estudos europeus sobre a solução final. Por horas a fio, grandes nomes da historiografia da Endlösung como Christopher Browning e Richard Evans discutiram com David Irving ponto a ponto das estratégias dos alemães para o assassínio bem como desmontaram sua versão sobre os fatos. O veredito do juiz, transcrito pela vitoriosa professora, deixa claro o peso que o relato dos peritos no tema teve para balizar a decisão: "O tratamento dispensado por Irving às provas históricas é tão perverso e flagrante que se torna difícil aceitar que sejam inadvertências de sua parte. (...) Ele deliberadamente perverteu as provas para adequá-las às suas convicções políticas". A vitória de Lipstadt no processo longe simboliza uma condenação severa aos negacionistas. Contudo, na contemporaneidade, não se pode esquecer que um terço das pessoas dizem nunca ter ouvido falar neste tema. Por isso, guardar os relatos dos sobreviventes e retomar as temáticas referentes à este período histórico são fundamentais para que, ainda que reste apenas um testemunho, como disse certa vez o historiador italiano Carlo Ginzburg, possamos restabelecer os indícios que dão conta de uma das páginas mais perturbadoras da história contemporânea.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A direita toma o poder, de William Sheridan Allen

 Publicado pela Editora Saga, do Rio de Janeiro, em 1969, o livro de William Sheridan Allen, jovem  historiador americano, tratava de um assunto deverasmente interessante. Ao invés de buscar as raízes do nazismo nos grandes centros da Alemanha ou mesmo de pensar como o país se rendera a Hitler, a ideia era tentar compreender como se deu o processo de ascensão do nacional-socialismo um uma cidade de pequeno porte, que o autor nomeou, ficticiamente, de Thalburg. As fontes utilizadas por ele vão desde entrevistas com moradores da cidade como dados estatísticos além da imprensa periódica local e regional. O livro foi dividido em duas partes: a primeira, A morte da democracia (janeiro de 1930 a janeiro de 1933); a segunda, Introduzindo a ditadura (janeiro de 1933 a janeiro de 1935). A morte da democracia evidencia como os alemães foram cedendo espaço em temas fundamentais para a sustentação do regime democrático às práticas nazistas. Inaceitáveis na teoria, elas passaram a contar com a anuência tácita das autoridades locais e regionais, o que contribuiu para o crescimento exponencial do movimento naquela cidade. O autor demonstra os efeitos da depressão oriunda das crises da década de 1920 e suas consequencias para a política do KPD (Kommunistiche Partei Deutschlands) e do SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands) além de apresentar como, aos poucos, os agitadores nazistas conseguem roubar as bandeiras dos demais partidos e impor sua visão de mundo. Em uma cidade de 10 mil habitantes ganha destaque, ainda, a forte penetração da ideologia nazista no campo religioso, com ampla maioria de luteranos. Muitos pastores esposam o nazismo como forma de recusar o comunismo ateu e outras ideologias que não davam conta do anseio nacionalista. A segunda parte apresenta ao leitor os mecanismos construídos pelos nazistas para reorganizar a sociedade alemã de acordo com os princípios estabelecidos por Hitler. Além de deixar claro que os espaços para o contraditório foram amplamente atacados e arrasados, o autor destaca como o regime mobilizou a imprensa escrita para este fim. Como uma das fontes utilizadas por William Sheridan Allen é o jornal, ele consegue evidenciar estas alterações de maneira bastante contundente e clara. Ele lembra, neste caso, que "os nazistas se aproveitavam do fato de que aquilo que o homem acredita é mais importante do que o que realmente acontece". Uma outra contribuição essencial da obra de Allen é explicar ao leitor como a Gleichschaltung foi aplicada, na prática. Eliminar todas as antigas organizações de classe que existiam antes da chegada do nazismo ao poder foi uma das estratégias utilizadas pelos novos mandatários que, em seis meses, destruíram todas elas e criaram outras, nacional-socialistas, às quais todos deveriam fazer parte. O autor destaca que "nenhuma das medidas nazistas nos primeiros seis meses do Terceiro Reich teve efeito final maior que a Gleichschaltung" e que o resultado eram os "thalburguenses transformados na espécie de massa desorganizada que os ditadores adoram". Ao elaborar o roteiro dos ataques nazistas às organizações de classe, o autor mostra, por exemplo, como uma delas, a dos professores, foi cooptada para os fins pedagógicos da ideologia na escola. A obra traça um panorama completo não apenas da violência imposta aos opositores mas também da vibração dos moradores com os resultados econômicos positivos dos primeiros anos do regime. Ao final, Allen deixa uma mensagem que compartilho com vocês: "O problema do nazismo era primariamente um problema de percepção. A este respeito, as dificuldades de Thalburg, e o destino de Thalburg deverão possivelmente ser compartilhados por outros  homens, em outras cidades, nas mesmas circunstâncias. O remédio não será encontrado facilmente".